Resenhas

      A realidade como ela é
                                                                    por Sarah Reis

          Aos vinte e um dias do mês de junho de 1839, nasce mais uma criança no Morro do Livramento no Rio de Janeiro. Filho do pintor de paredes Francisco de Assis e da portuguesa Maria Leopoldina Machado de Assis, além disso, neto de escravos, ninguém poderia imaginar que aquele ser sairia do anonimato para o prestígio de uma vida intelectual. Joaquim Maria Machado de Assis era seu nome, que ainda por cima era mulato, epiléptico, gago, e que sequer tinha saído da sua cidade. Mas superou todas as expectativas, começando por tornar-se autodidata e depois por transformar-se num dos melhores escritores brasileiros. Suas obras foram marcadas por características às vezes até impressionantes para a época, tais como a crítica à sociedade, a ironia, o diálogo com o leitor, a análise da figura feminina, a loucura, o casamento, o adultério, a vaidade. A literatura machadiana foi dividida em duas fases, uma, por assim dizer, romântica e outra realista. Dentro do Romantismo, com romances como laiá Garcia, não se destacou, considerada até por ele mesmo como sua pior fase. Casou-se com Carolina Novais, foi fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, morrendo em 29 de setembro de 1908, pouco depois da morte de seu grande amor. Através de um processo gradual atingiu a maturidade artística com o famoso e revolucionário romance realista Memória Póstumas de Brás Cubas, do qual mostra-se a resenha a seguir.

          Memórias Póstumas de Brás Cubas consagrou-se como o marco inaugural do Realismo no Brasil, um romance extremamente relevante na literatura, além de revelar-se interessantíssimo, por não tratar superficialmente a ocorrência dos fatos, mas sim analisá-Ia criticamente. Veio para derrubar o romantismo, que até então era a escola literária da época.
A obra trata das memórias de Brás Cubas, um dos homens da elite fluminense do século XIX. Por meio de fatos corriqueiros e até banais da vida de um solteirão, o locutor aproveita para examinar satiricamente e implicitamente a realidade e as relações ocorridas dentro de uma sociedade que vive de aparências.

          Por ser um romance inovador, já começa de uma forma muito diferente. O enunciador, que faz questão de se denotar como um defunto autor e não um autor defunto, começa a contar sua vida pelo fim, julgando vulgar e comum colocar o nascimento no princípio, assim como fez Moisés.

          O texto apresenta também um alto grau de informatividade e uma grande percepção de mundo, ao fazer intertextualidade com vários outros textos; citando, aludindo e parafraseando constantemente fragmentos e personagens históricos, religiosos, medievais, mitológicos, filosóficos entre outros, como nesta passagem que diz: "... clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo: La maison est à moi, c' est à vaus d'en sortir."(capítulo VIII, p.29).

          A visão que o locutor tem da mulher é de um ser dissimulado, que tenta exibir-se pura e submissa ao marido na frente da sociedade, quando na verdade é interesseira; como a personagem Marcela; ou adúltera, como Virgílio, mas que também foi interesseira, ao deixar Brás para se casar com Lobo Neves em vista da posição social dele. Mas também há uma figura doce da mulher transposta na mãe de Brás Cubas, e nas meninas Eugênia e Eulália.

          Outro aspecto importante na obra é a crítica mordaz ao preconceito, tanto racial, como físico e social. Verifica-se isto, quando expõe-se Brás Cubas abusando e tratando como simples objetos os seus escravos, quando desiste de se envolver com Eugênia apenas porque ela era coxa, quando ele vê um antigo amor, Marcela, devastado pela varíola e o trata com frieza e quando ele desmerece profissões taxadas de menos valor como a de almocreve.

          A narrativa é alinear, pois a história é contada truncadamente, interrompe-se uma parte, quando vê-se que esta tem relação com outra, depois volta-se a narrar o acontecimento atalhado.

          Há também um contínuo diálogo entre o locutor e o leitor e amostras da preocupação do locutor com quem está lendo, porque sabe que dentre os leitores existe o crítico, o sensível, o que não gosta de capítulos grandes, entre outros tipos, destinando até capítulos inteiros ao leitor. Um bom exemplo dessa conversa com o leitor é quando na obra diz-se:"... porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida..."(capítulo LXXI, p.103).

          Na maioria das obras machadianas três peculiaridades não podem faltar: ironia e humor; loucura; e traição. E em Memórias Póstumas de Brás Cubas não poderia ser diferente. Percebe-se a presença da ironia e do humor como uma forma de criticar alguma ação considerada hipócrita: "... Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis, nada menos." (capítulo XVII, p. 44). Já a loucura é explicitada como um aspecto sempre presente na sociedade e é tratada em vários capítulos, como os intitulados Um grão de Sandice, no qual Brás conta a história de um louco chamado Romualdo; e O alienista, em que um alienista visita Brás Cubas, porque Quincas Borba achava que Brás estava endoidecendo. E a traição toma-se visível nos encontros amorosos de Virgília e Brás Cubas.

          A sociedade da época em que é narrada a história era incrustada de puro fingimento. As pessoas, principalmente das altas camadas sociais, agiam em tomo do que a sociedade iria pensar, como no momento em que o pai de Brás o manda para Coimbra para que ele não se envolvesse mais com Marcela, já que ela era uma prostituta. Além do que, o pai dele também queria que ele fosse deputado e se casasse com uma dama da elite, porque era conveniente para a sociedade que ele tivesse poder, fosse político e casado.

          Existe também outros traços interessantes no texto como a educação de Brás, o emplasto e o Humanitismo. Brás Cubas foi educado com os mimos do pai e as correções da mãe, e o locutor utiliza isso como um meio de ironizar a sociedade patriarcal, e até dá como título, O menino é pai do homem, de um capítulo, que apresenta esta característica. Já o emplasto seria um medicamento que se ficasse pronto, serviria para cura das dores e da melancolia da humanidade, através disso denuncia-se uma falha do Naturalismo, que tentava buscar uma comprovação científica para tudo. O Humanitismo é uma teoria defendida pelo personagem Quincas Borba, que surge para destituir as outras teorias, tendo como principal fundamento o princípio de que a guerra é um bem, já que tudo na vida pressupõe luta, onde só quem ganha é o melhor.

          No final da obra, Brás Cubas faz uma reflexão sobre a sua vida. O capítulo recebe como título Das Negativas, onde Brás alega que não fora nem fizera nada: nem fora califa, nem ministro, não casara-se, não alcançara a celebridade do emplasto, entre outros pontos. Mas como para o término de uma obra tão revolucionária não podia faltar a crítica final, Brás afirma que não foi como a maioria das pessoas: "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria."(capítulo CLX, p. 176).

          Verifica-se então, que o texto é uma leitura muito agradável, e de alta validade para entender tanto a literatura brasileira, quanto a sociedade humana. Logo, é recomendável às pessoas que gostam de analisar mais profundamente a realidade, e às outras pessoas também, para que aprendam com o mestre Machado a verdadeira essência do ser e a olhar a vida mais criticamente.

- Sarah Seyla Oliveira Reis tinha 16 anos, e era aluna da terceira série do Ensino Médio do Instituto Francisco de Assis.